“O homem põe e Deus dispõe”. Com esse adágio popular o ministro aposentado do STJ (Superior Tribunal da Justiça), Milton Luiz Pereira, explicava como, em janeiro de 1959 – quase noivo em Curitiba – foi parar em Campo Mourão para advogar, ganhar uns trocados e voltar aquele mesmo ano para fazer concurso para juiz, carreira que escolhera no segundo ano da faculdade, e acabou se fixando e se tornou prefeito da cidade nas eleições de novembro de 1963.
Foi uma eleição histórica. Milton Luiz Pereira derrotou o empresário Ivo Trombini, do PSD (Partido Social Democrático), o candidato da oligarquia agrária que dominava a política na região desde 1947 – quando o município conquistou sua emancipação – representada pelos fazendeiros, industriais madeireiros e pela poderosa Rádio Colmeia, que tinha entre os sócios-diretores Erwin Bonkowski e Aníbal Khury.
Milton Luiz Pereira foi convidado pelo governador Ney Braga para ser candidato a prefeito. O Partido Democrata Cristão estava no governo do Estado e precisava ganhar no interior. Foi o advogado Armando Queiroz quem o convenceu. Foi ele também quem o incentivou ficar em Campo Mourão. Sobre a candidatura, argumentou que Milton Luiz Pereira, pelo trabalho como advogado, desfrutava de bom conceito na cidade e não havia restrição ao seu nome. Armando revelou-se um estrategista. Elegeu-se em dois mandatos à Assembleia Legislativa do Paraná e presidiu a casa.
Doutor Milton, como era chamado, despontou como um fenômeno. Ele representou o novo. A população da região não suportava mais a velha política do PSD do ex-governador Moisés Lupyon, em duas gestões marcadas pela pistolagem e grilo de terras. Pistoleiros agiam impunemente a soldo das companhias colonizadoras de terras. Terras amansadas com suor, cultivadas e com benfeitorias, mudavam de donos em documentos forjados em Curitiba. Foi um tempo de muitos abusos. Esse cenário favoreceu Milton Luiz Pereira, que arrasou nas urnas.
Nem a presença do ex-presidente Juscelino Kubitschek no comício-gigante do PSD, nem os 50 bois abatidos para o churrasco adiantaram. Os eleitores foram conhecer JK, ver de perto o arrojado construtor de Brasília, o presidente Bossa Nova e degustar o churrasco. Mas votaram mesmo em Doutor Milton. O PSD e o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), tradicionais adversários, aliaram-se contra o inimigo comum. Saiu ainda um terceiro candidato, Miguel Balaba, do PSP (Partido Social Progressista, criado por Ademar de Barros), que teve poucos votos.
Assustado com tanta gente no comício, o advogado foi à luta. Passou a visitar casa por casa nos distritos e bairros rurais, ao contrário dos adversários que ficavam apenas nos comícios. A presença física do candidato, muitas vezes jantando na casa das famílias – o tradicional virado-de-feijão com torresmo e couve – desfez o boato de que Milton Luiz Pereira era um advogado grã-fino que não entrava na casa de pobres. Foi impressionante a mobilização a seu favor às vésperas da eleição. Lideranças de todos os cantos aderiram à campanha, conduzindo eleitores para votar, de jipes e até de charretes.
Entre as inovações de sua administração, Milton Luiz Pereira introduziu um sistema de consultas populares, que precedeu em muitos anos as atuais audiências públicas para a elaboração da LOA (Lei de Orçamento Anual) e LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), previstas na Constituição. Na época Campo Mourão também ganhou um concurso nacional, que destacou os municípios mais bem organizados do país. Como “Município Modelo”, atraiu empresas de fora e elevou sua auto-estima. O país tomou conhecimento da cidade e de seu prefeito.
O Volks Azul - O lance mais folclórico da administração de Doutor Milton, sem dúvida, aconteceu a oito meses do final do mandato, quanto pediu afastamento do cargo para assumir a carreira que tanto queria – juiz provisório em Curitiba. Agradecida, a população comprou um carro para o prefeito, porque ele não tinha. Mas esqueceu de por gasolina. Sem conseguir dirigir o Volks azul, os populares empurraram o carro até sua casa. Fotos antigas mostram o advogado, sua esposa Rizoleta Mary e a filha Gisele, dentro do Volks.
Era grande a estima dos mourãoenses pelo prefeito. O dinheiro que sobrou da lista de contribuintes para a compra do carro, foi usado para pagar as contas de Doutor Milton. Um sitiante viajou vários quilômetros para entregar-lhe seu modesto presente - uma galinha.
Quando Paulo Pimentel assumiu o governo do Estado, em 1966, convidou Milton Luiz Pereira para compor seu secretariado. O prefeito recusou. Argumentou que seu trabalho em Campo Mourão não estava concluído. Pimentel o intimou outras duas vezes, e ele respondeu que ainda faltavam executar as obras da rodoviária e da praça central, que precisava cumprir a obrigação assumida com o povo da cidade. E seguiu em frente.
Nasceu Milton Luiz Pereira em 9 de dezembro de 1932 em Itatinga, sudoeste paulista, mas desde cedo sua família mudou-se para o Paraná. Morou em Mandaguari e em Londrina. Após terminar o ginásio nessa cidade, mudou-se em 1951 para Curitiba. Fez o segundo grau no Colégio Estadual do Paraná, enquanto trabalhava como graxeiro na oficina de “seu Ítalo”. Serviu no CPOR e deu baixa como 2º tenente. Na época morava na Pensão Esplanada.
Já na Faculdade de Direito da UFPR, aproveitando seu dom de falar bem, trabalhou na Rádio Clube Paranaense (PRB2) até a formatura. Como repórter, transmitiu ao vivo muitos eventos. Conheceu vários políticos e entrevistou alguns, como o governador Bento Munhoz da Rocha Netto e o presidente Juscelino Kubitschek. Em 1958, durante a Semana de Estudos Jurídicos em Natal (RN), ganhou o concurso de oratória realizado pela União Nacional dos Estudantes. A oratória, ilustrada com os clássicos da literatura universal, seria uma marca da carreira de Milton Luiz Pereira.
Pela Voz do Brasil, ainda como prefeito de Campo Mourão, Doutor Milton soube de sua nomeação para juiz federal substituto da 2ª Vara Federal em Curitiba. A partir daí construiu uma carreira brilhante na magistratura, tornando-se respeitando no país. Em 1988 assumiu a presidência do Tribunal Federal de Recursos (TFR). Em 1992, ingressou no STJ, onde se aposentou em 2003. Em 7 de abril de 1999, no discurso em comemoração dos 10 anos do STJ, relacionou a obra Os Miseráveis, de Victor Hugo, aos “esfomeados e desvalidos da sociedade globalizada, satanizada pelo lucro, sem pátria e violadora de soberanias”. Demonstrou que não esquecera sua origem simples.
Em 2004 foi homenageado pelo STJ na sessão solene de 14 de maio. Ao agradecer, recordou Guimarães Rosa: “O real não está na saída, nem na chegada. Ele se dispõe para a gente no meio da travessia”. E acrescentou: “Convivendo com V. Exas., espero que a minha ‘travessia’ corresponda aos votos de minha chegada para que a minha saída possa ser pelo menos lembrada”. Suas palavras foram registradas na ata do tempo. Milton Luiz Pereira foi e será sempre lembrado.
O amor por Campo Mourão - Mas Doutor Milton nunca se esqueceu de Campo Mourão. Tinha em sua casa no bairro Água Verde, em Curitiba, quadros, fotografias e outras recordações e até mesmo um espaço para guardar essas coisas. Volta e meia recebia pesquisadores e amigos mourãoenses.
Quem o levou a Campo Mourão foi o amigo Nelson Teodoro, de tanto falar bem da cidade nos tempos da Pensão Esplanada. Mas a vida é engraçada! Nelson jamais imaginou que o amigo seria adversário político de sua família. Era então prefeito da cidade seu tio, Antonio Teodoro de Oliveira (PSD), que fez uma ótima administração – saneamento e asfalto – que contribuíram para a urbanização da cidade. Até o Paço Municipal, sede do poder Executivo, foi obra sua. Mas não conseguiu eleger Ivo Trombini. Portanto, o novo prefeito já pegou a máquina azeitada.
Outra pessoa importante na vida de Milton Luiz Pereira foi o empresário mourãoense Eduardo Portes Rocha, que conheceu nos tempos do CPOR. Ele cedeu espaço, mesa e máquina de escrever para o amigo começar a advogar em Campo Mourão. Todos os meses acontecia uma semana de sessões de júri na cidade, que era uma grande atração popular. Atuando na defesa dos réus, já nos primeiros julgamentos Doutor Milton ganhou notoriedade e o dinheiro que tanto precisava. Só voltou a Curitiba para pegar a noiva. Casaram-se no final daquele ano de 1959 em Campo Mourão.
Ex-alunos de Milton Luiz Pereira na Faculdade de Direito de Curitiba recordam que ele era rigoroso. “Quem estudasse Direito Penal com ele, aprendia mesmo! Mas quem ficasse para segunda época, não tinha a menor chance. Reprovava!” Também lecionava Direito Constitucional. E deu aulas em Campo Mourão, de Legislação Aplicada no curso Técnico de Contabilidade, e de Princípios de Direito, no Comércio.
Milton Luiz Pereira faleceu na madrugada de 16 de fevereiro de 2012, sete horas após sua esposa, no mesmo hospital e em decorrência de complicação da mesma doença – câncer no pulmão. Almas gêmeas na vida, na morte e na eternidade! Ele tinha 79 anos. Em Campo Mourão tiveram os filhos Gisele, Gislene e Celso de Tarso. Luciene e Marcos Vinicius nasceram em Curitiba.
A serenata- E agora, com a permissão do leitor, passo a usar a primeira pessoa do pronome pessoal. Como mourãoense e membro da família Pereira – que povoou Campo Mourão em 1903, e que não tem parentesco com Milton Luiz Pereira, embora as origens comuns levem a cidades próximas do interior paulista e ao sul de Minas – das boas lembranças que guardo de Doutor Milton, a mais bonita, sem dúvida, foi da noite de sua vitória na eleição. A UMES (União Mourãoense dos Estudantes Secundaristas) resolveu fazer uma serenata para o novo prefeito.
Lembro-me, como em um rápido flash, do momento em que pisávamos com cuidado o chão da entrada da casa dele para não fazer barulho. E de repente, os instrumentos da banda quebraram o silêncio. Eu tinha apenas 11 anos e acompanhava minhas irmãs, Kátia e Júlia, que participavam das atividades da UMES. Aliás, os estudantes deram uma grande contribuição à campanha de Dr. Milton, na propaganda e mobilização.
Em fevereiro do ano passado estive duas vezes na casa de Milton Luiz Pereira, entrevistando-o para um livro que estou escrevendo. Interessava-me, sobretudo, como um advogado novato – um desconhecido sem eira nem beira, como criticava a oposição – conseguira a façanha de desbancar a poderosa máquina do PSD, morando menos de cinco anos em Campo Mourão.
No final da segunda visita, enquanto ele abria o portão de sua casa para me liberar, perguntei-lhe se recordava de uma serenata feita pelos estudantes. E ele respondeu com firmeza:
- Claro que me lembro! Eu até abri a janela para recebê-los.
Então, disse-lhe que eu estava junto, criança ainda, mas nunca esqueci. Sempre tive vontade de contar-lhe pessoalmente essa passagem. E naquela noite, no final da entrevista, na despedida, realizei meu desejo e voltei feliz para casa.
Fotografias:
1. O jovem radialista dos tempos da PRB2 (Rádio Clube Paranaense);
2. Ministro Milton Luiz Pereira – acervo do STJ;
3. Dr. Milton, a esposa Rizoleta Mary e a filha Gisele dentro do Volks. Acervo de Jair Elias dos Santos Júnior;
4. O candidato Dr. Milton, José Custódio de Oliveira, cabo eleitoral do Barreiro das Frutas e Rio da Várzea, e o candidato a vereador Zamir José Teixeira;
5. Estudantes presentes na posse no Cine Plaza: Kátia, Irajá, Júlia e Rosa Helena.
ereiro do ano passado estive duas vezes na casa de Milton Luiz Pereira, entrevistando-o para um livro que estou escrevendo. Interessava-me, sobretudo, como um advogado novato – um desconhecido sem eira nem beira, como criticava a oposição – conseguira a façanha de desbancar a poderosa máquina do PSD, morando menos de cinco anos em Campo Mourão.No final da segunda visita, enquanto ele abria o portão de sua casa para me liberar, perguntei-lhe se recordava de uma serenata feita pelos estudantes. E ele respondeu come lembro! Eu até abri a janela para recebê-los. o, disse-lhe que eu estava junto, criança ainda, mas nunca esqueci. Sempre tive vontade de contar-lhe pessoalmente essa passagem. E naquela noite, no final da entrevista, na despedida, realizei meu desejo e ***
Fotografias
Foto 1
Milton, o jovem locutor dos tempos da PRB2, Rádio Clube Paranaense.
Foto 2
Acervo do STJ (currículo dos ministros)
Foto 3
Dr. Milton, sua esposa Rizoleta Mary e a filha Gisele no Volks doado. Registro do acervo de Jair Elias dos Santos Júnior.
Foto 4:
Dr. Milton, José Custódio de Oliveira, cabo eleitoral do Barreiro das Frutas e Rio da Várzea, e o candidato a vereador Zamir José Teixeira.
Foto 5:
Estudantes na posse de Dr. Milton no Cine Plaza: Kátia, Irajá, Júlia e Rosa Helena .
Foto 1
Milton, o jovem locutor dos tempos da PRB2, Rádio Clube Paranaense.
Foto 2
Acervo do STJ (currículo dos ministros)
Foto 3
Dr. Milton, sua esposa Rizoleta Mary e a filha Gisele no Volks doado. Registro do acervo de Jair Elias dos Santos Júnior.
Foto 4:
Dr. Milton, José Custódio de Oliveira, cabo eleitoral do Barreiro das Frutas e Rio da Várzea, e o candidato a vereador Zamir José Teixeira.
Foto 5:
Estudantes na posse de Dr. Milton no Cine Plaza: Kátia, Irajá, Júlia e Rosa Helena .
Belo texto Silvestre
ResponderExcluirGostei do texto!
ResponderExcluirParabéns pela bela crônica!
ResponderExcluirPrezado,
ResponderExcluirEm nome da familia, agradeço pelo artigo e parabenizo pelo seu ótimo conteúdo.
Marcus Pereira (filho).
Como filha, agradeço o artigo tão bem escrito.Saudades,muita,muitas saudades do meu pai, da minha mãe...Ler e relembrar atenuam um pouco dessa saudade e trazem alento.parabéns pelo texto!
ResponderExcluirGisele de Paola(filha)